Num dos gameplays lançados na campanha de divulgação do game Days Gone, num determinado ponto é mostrada a opção de matar um personagem de forma rápida e indolor ou deixar ele pra ser comido vivo por uma horda de Frenéticos (os zumbis do jogo). Ao pegar o game ano passado, logo percebi que essa escolha (assim como outras relacionadas à história) não tava mais lá. Em entrevista para o Screen Rant, o diretor e roteirista do game, John Garvin, explicou que as escolhas foram removidas porque acabavam por prejudicar a experiência do jogador, fazendo com que o personagem fosse contraditório e difícil de gostar. Essa é uma lição que, jogando jogos como Horizon Zero Dawn e Red Dead Redemption 2, gostaria que mais desenvolvedores seguissem. E, curiosamente, mesmo tendo uma história imodificável, Days Gone é um dos jogos que mais me deu sensação de liberdade nessa geração de consoles.
Jogos são limitados por natureza. Mesmo no mais complexo dos RPGs, você sempre vai estar limitado ao que os desenvolvedores programaram. Matar esse ou aquele personagem? Se aliar a essa ou aquela facção? Jogos com escolhas são populares, indo muito além dos “Role Playing Games” e estão presentes em gêneros como Point and Click e jogos mais simples de ação e aventura como Infamous e Prototype. Mas quase sempre esses jogos tem uma tendência a binariedade, onde o jogador escolhe ser bom ou mal, de forma às vezes até inconsistente, simplória e onde ele só faz aquilo que é mais confortável. Como John Garvin menciona na entrevista, o número de jogadores que escolhem o lado “do bem” em Infamous é muito maior que o contrário.
Porém, de uns anos pra cá, muitos jogos tem popularizado cada vez mais uma forma diferente de dar mais liberdade ao jogador. Em 2012, a Ubisoft lançava Far Cry 3, um game que usa muito da fórmula de sucesso da Rockstar, com mundo aberto vasto e missões lineares, mas aperfeiçoou algo que vinha sendo tentado desde o primeiro game da franquia: o gameplay “Sistêmico“.
Mas o que exatamente é isso? Far Cry 3 é um game feito com várias regras que o jogador pode usar em sua vantagem: arbustos servem como esconderijo, animais carnívoros atacam tudo que se move, fogo se espalha por superfícies inflamáveis, inimigos podem ser distraídos com pedras. É algo simples na superfície e o jogo pode ser jogado como um shooter ou um jogo de furtividade genérico, mas é a combinação consistente desses elementos, que podem ser usados de várias formas diferentes e frequentemente fogem do controle do jogador, que fazem o game brilhar. E foi um sucesso tão grande que a Ubisoft essencialmente tentou tornar quase todos os seus jogos posteriores em Far Cry 3, o que eventualmente influenciaria franquias ainda mais famosas como Metal Gear Solid e The Legend of Zelda.
Em Far Cry 4, a Ubisoft resolveu implementar essas escolhas binárias que mencionei mais cedo, mas o que realmente se destaca no jogo, como foi usado de forma extensiva na campanha de divulgação, foi o lema “cada momento, uma história”. Aperfeiçoando o que havia sido feito no jogo anterior, os momentos mais memoráveis do jogo acabam por ser anedotas que o jogador co-cria através da interação com os sistemas do jogo em encontros gerados proceduralmente, como um elefante que resolve adentrar um acampamento do Exército Dourado e cria um caos que não necessariamente está sob o controle do jogador.
O que é curioso é que esse tipo de gameplay acaba sendo muito mais próximo dos tradicionais RPGs de mesa, onde o limite é a imaginação do jogador e a teimosia do Mestre. Mesmo nos melhores games que tentam simular Dungeons and Dragons e similares, cabe ao jogador sempre escolher o que já foi pré-determinado pelos desenvolvedores, sejam as opções A, B, ou o alfabeto inteiro. Em games sistêmicos, derrotar um acampamento inteiro de piratas com a ajuda inesperada de dois tigres famintos se parece muito mais com o lançar de dados naquela parte tensa da sessão.
E é por isso que, mesmo que não ofereça nenhum controle sobre o que acontece na história, Days Gone foi um dos jogos que mais me deu essa sensação de liberdade. O grande foco do gameplay são as hordas de frenéticos, que podem ser derrotadas com o uso de diferentes ferramentas e estratégias, e nunca vou esquecer algumas das histórias pessoais que tive ao enfrentar algumas dela. Atrair uma horda para um acampamento de inimigos e lidar com o que sobrar nunca perde a graça.
E ainda sobre a história, múltiplas escolhas tendem a diminuir a qualidade da mesma. Além da quebra de personagem mencionada por Garvin, a moral adotada pelo jogador pode vir a contradizer a mensagem que o jogo quer passar. A Rockstar, por exemplo, que continua presa num loop de gameplay simplório e missões desnecessariamente cheias de restrições, teve todo um cuidado em adaptar diálogos de acordo com a moral de Arthur Morgan em Red Dead Redemption 2, mas como a história segue e acaba praticamente da mesma forma, um Arthur malvado acaba diminuindo totalmente a jornada óbvia do personagem (tá no título do jogo). E mesmo alguns jogos com escolhas tendo algumas das melhores histórias da mídia, como The Witcher 3 e o próprio Red Dead, nenhum dos dois me marcou tanto como o que a Naughty Dog fez nos dois The Last of Us – especialmente o segundo.
É óbvio que não quero dizer que RPGs e outros jogos com escolhas são necessariamente piores – alguns dos meus jogos favoritos são RPGs. Mas são nos jogos sistêmicos onde o jogador realmente pode expressar sua liberdade e criatividade, independente se a jornada começa e termina no mesmo lugar ou não.
Em The Outer Worlds, o último lançamento da Obsidian (responsável pelo celebrado Fallout New Vegas), apesar da infinidade de escolhas nos diálogos e até a possibilidade de matar todos os NPCs, meu momento favorito foi quando recebi a missão de falir o dono de uma fábrica e todas as opções que o jogo me deu pra fazer isso e com efeito mínimo no desenrolar da história. Isso porque The Outer Worlds é, além de um RPG, um “immersive sim“, um gênero focado em interações múltiplas que recompensam pensamento “fora da caixa”, que inclui clássicos como Deus Ex e System Shock, mas que infelizmente nunca foram grandes sucessos de vendas. Os jogos sistêmicos basicamente vieram para popularizar uma versão simplificada dessa filosofia de design. E pelo visto vieram pra ficar.
O estrondoso sucesso de Zelda: Breath of the Wild se deu em grande parte pelas pequenas histórias que os jogadores criam em vários momentos ao explorarem e interagirem com os elementos do game, solucionando problemas de formas que sequer os desenvolvedores pensavam ser possível. E apesar de Link, Jason Brody, Deacon Saint John e Ellie serem os mesmos personagens que os desenvolvedores queriam do começo ao fim, é a aventura que o jogador co cria com eles que tornam o vídeo games uma mídia tão especial.
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